quinta-feira, 16 de junho de 2016

Vozes d’África | Castro Alves
Deus! ó Deus! onde estás que não respondes?
Em que mundo, em qu’estrela tu t’escondes
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde desde então corre o infinito...
Onde estás, Senhor Deus?...
Qual Prometeu tu me amarraste um dia
Do deserto na rubra penedia
— Infinito: galé! ...
Por abutre — me deste o sol candente,
E a terra de Suez — foi a corrente
Que me ligaste ao pé...
O cavalo estafado do Beduíno
Sob a vergasta tomba ressupino
E morre no areal.
Minha garupa sangra, a dor poreja,
Quando o chicote do simoun dardeja
O teu braço eternal.
Minhas irmãs são belas, são ditosas...
Dorme a Ásia nas sombras voluptuosas
Dos haréns do Sultão.
Ou no dorso dos brancos elefantes
Embala-se coberta de brilhantes
Nas plagas do Hindustão.
Por tenda tem os cimos do Himalaia...
Ganges amoroso beija a praia
Coberta de corais ...
A brisa de Misora o céu inflama;
E ela dorme nos templos do Deus Brama,
— Pagodes colossais...
A Europa é sempre Europa, a gloriosa! ...
A mulher deslumbrante e caprichosa,
Rainha e cortesã.
Artista — corta o mármor de Carrara;
Poetisa — tange os hinos de Ferrara,
No glorioso afã! ...
Sempre a láurea lhe cabe no litígio...
Ora uma c’roa, ora o barrete frígio
Enflora-lhe a cerviz.
Universo após ela — doudo amante
Segue cativo o passo delirante
Da grande meretriz.
Mas eu, Senhor!... Eu triste abandonada
Em meio das areias esgarrada,
Perdida marcho em vão!
Se choro... bebe o pranto a areia ardente;
talvez... p’ra que meu pranto, ó Deus clemente!
Não descubras no chão...
E nem tenho uma sombra de floresta...
Para cobrir-me nem um templo resta
No solo abrasador...
Quando subo às Pirâmides do Egito
Embalde aos quatro céus chorando grito:
“Abriga-me, Senhor!...”
Como o profeta em cinza a fronte envolve,
Velo a cabeça no areal que volve
O siroco feroz...
Quando eu passo no Saara amortalhada...
Ai! dizem: “Lá vai África embuçada
No seu branco albornoz. . . “
Nem vêem que o deserto é meu sudário,
Que o silêncio campeia solitário
Por sobre o peito meu.
Lá no solo onde o cardo apenas medra
Boceja a Esfinge colossal de pedra
Fitando o morno céu.
De Tebas nas colunas derrocadas
As cegonhas espiam debruçadas
O horizonte sem fim ...
Onde branqueia a caravana errante,
E o camelo monótono, arquejante
Que desce de Efraim
Não basta inda de dor, ó Deus terrível?!
É, pois, teu peito eterno, inexaurível
De vingança e rancor?...
E que é que fiz, Senhor? que torvo crime
Eu cometi jamais que assim me oprime
Teu gládio vingador?!
Foi depois do dilúvio... um viadante,
Negro, sombrio, pálido, arquejante,
Descia do Arará...
E eu disse ao peregrino fulminado:
“Cão! ... serás meu esposo bem-amado...
— Serei tua Eloá. . . “
Desde este dia o vento da desgraça
Por meus cabelos ululando passa
O anátema cruel.
As tribos erram do areal nas vagas,
E o Nômada faminto corta as plagas
No rápido corcel.
Vi a ciência desertar do Egito...
Vi meu povo seguir — Judeu maldito —
Trilho de perdição.
Depois vi minha prole desgraçada
Pelas garras d’Europa — arrebatada —
Amestrado falcão! ...
Cristo! embalde morreste sobre um monte
Teu sangue não lavou de minha fronte
A mancha original.
Ainda hoje são, por fado adverso,
Meus filhos — alimária do universo,
Eu — pasto universal...
Hoje em meu sangue a América se nutre
Condor que transformara-se em abutre,
Ave da escravidão,
Ela juntou-se às mais... irmã traidora
Qual de José os vis irmãos outrora
Venderam seu irmão.
Basta, Senhor! De teu potente braço
Role através dos astros e do espaço
Perdão p'ra os crimes meus!
Há dois mil anos eu soluço um grito...
escuta o brado meu lá no infinito,
Meu Deus! Senhor, meu Deus!!...

sábado, 28 de maio de 2016

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS
CURSO DE DIREITO


SEMINÁRIO
ALUNO: Juracy de Oliveira Paixão
PROFESSOR: Ivo Ferreira Gomes
CADEIRA: DIREITO CONSTITUCIONAL
Novembro - 1993


"O PRÍNCIPE"
NICCOLÒ MACHIAVELLI



1 - À Guisa de Prefácio
“O PRÍNCIPE”, obra de poucas páginas, é denso em conceitos de política, com abundância de metáforas e figurações. A leigos, explicá-lo, abordando cada capítulo à luz do próprio raciocínio, seria incorrer em graves erros de interpretação.
Optou-se por analizar a criação maior de MAQUIAVEL tratando-a de forma descritiva e na 1a. pessoa do singular. Visa esta decisão, também, homenagear o autor.
As eventuais citações originais, ou de terceiros, serão, como de praxe, indicadas entre aspas e em itálico, seguidas de numeral bibliográfico.
À GUISA DE PREFÁCIO, ressalte-se que “O PRÍNCIPE” foi escrito em plena atmosfera inquieta do RENASCIMENTO, lançando a ideia da unidade italiana, em contraposição à estrutura vigente das CIDADES ESTADOS. No seu estilo forte e contraditório, MAQUIAVEL elabora um autêntico e formal tratado do ABSOLUTISMO, já tão em voga nas demais regiões do continente europeu.
Na verdade, MAQUIAVEL "refletiu as condições da época, usando o livre exame dos fatos históricos, o ataque às tradições medievais, a instituição do êxito como única medida do poder do príncipe, enfim, a ruptura do temporal com o espiritual".(1).


2 - Introdução
Nos tempos em que vivemos - mais do que em qualquer outro - o pensamento de MAQUIAVEL está vivo e atuante. Com as recentes modificações na Ordem Política Mundial, o "PRÍNCIPE NOVO" dita as regras, ignorando os interesses e perspectivas dos seus "VASSALOS". O "SENHOR DA GUERRA" renova suas forças e avança, faminto, sobre novos campos... O limiar do SÉCULO XXI nada apresenta de novo, no âmbito do pensamento político, a não ser o aperfeiçoamento dos métodos de dominação. A hipocrisia se veste de nova capa, em contraposição ao paternalismo do passado, para que possa transitar incólume por entre as massas.  "APARENTA UMA VIRTUDE, Ó PRÍNCIPE, SE NÃO A TENS!". O PRÍNCIPE NOVO tem dois ESPELHOS: um para preparar-se antes de sair a passeio, outro para inspirá-lo e guiá-lo antes de sair a negócio; um para a retórica da impostura , outro para a arte de governar.
Passeemos do CONFLITO DO GOLFO PÉRSICO ao DRAMA DA CROÁCIA E BÓSNIA ... da INVASÃO DO PANAMÁ às PALMAS PARA FUJIMORI... da FUGA DE PC FARIAS à FUGA DO JOÃO DA SILVA... do NÃO ASSINAR A ATA DA CONSTITUIÇÃO DE 1988 ao SER CONTRA A REVISÃO CONSTITUCIONAL DE 1993. 
Será um PASSEIO cheio de revelações MAQUIAVÉLICAS, em que a LUZ DA NOITE ilumina mais que as SOMBRAS DO DIA...
"Eles desejariam um pregador que lhes ensinasse o caminho do paraíso, e eu gostaria de encontrar um que lhes ensinasse o caminho até a casa do diabo." Maquiavel, Carta a Guicciardini

3 - Notas sobre o AUTOR
Niccolò Machiavelli nasceu em FLORENÇA, a 3 de maio de 1469, numa ITÁLIA esplendorosa mas infeliz. A península era formada por vários pequenos Estados, nas mais diversas fases política, econômica e cultural. A região era dominada por cinco grandes ESTADOS: NÁPOLES, os ESTADOS PAPAIS, FLORENÇA, MILÃO e VENEZA.
No último decênio do século, toda a península passou por enormes conturbações, que culminaram com a invasão pela FRANÇA e ESPANHA e com profundas modificações nos limites entre os ESTADOS então existentes.
Foi nessa geografia confusa e disputada que MAQUIAVEL cresceu e chegou à adolescência. Seu pai era advogado de poucas posses, humanista. Estudioso e perspicaz, MAQUIAVEL, aos 12 anos, já era possuidor de excelente estilo clássico. Em 1498, aos 29 anos, é nomeado Segundo Chanceler, cargo de grande importância na administração do Estado. Nessa função, fez as vezes de embaixador de Florença em inúmeras missões pelos Estados vizinhos.
Com a queda de seu protetor, o governante Soderini, assumem o poder os MÉDICIS, e MAQUIAVEL é deposto e mantido em prisão domiciliar. Mais tarde, acusado de conspiração, é torturado e condenado. Com o tempo, graças à influência de seu amigo VETTORI, ligado aos MÉDICIS, é libertado. Sem emprego, vai morar em um sítio da família, nos arredores de FLORENÇA. Num ambiente campestre, cercado de vinhas e ovelhas, MAQUIAVEL dá vazão à sua capacidade de analista político e começa a criar suas mais importantes obras:

- O PRÍNCIPE, tratado sobre a formação do ESTADO;
- DISCURSOS SOBRE A PRIMEIRA DÉCADA DE TITO LÍVIO, análise dos feitos do grande estadista e historiador romano;
- A ARTE DA GUERRA, vasto e minucioso manual sobre como lutar;
- HISTÓRIA DE FLORENÇA, copilação de tudo o que, então, era conhecido sobre a cidade.

Escreveu, ainda, a comédia MANDRÁGORA , inúmeras poesias e ensaios literários.

Considerado um republicano, não consegue sensibilizar os MÉDICIS para voltar à órbita do PODER. 
Em 1520, recebe a incumbência de escrever a HISTÓRIA DE FLORENÇA, o que lhe causa grande decepção: Com a queda dos MÉDICIS em 1527, é restaurada a república, e os jovens republicanos o consideram ligado aos tiranos do passado e o repudiam. Foi o seu fim: desgostoso, adoece e morre.
MAQUIAVEL considerava-se predestinado a falar sobre o ESTADO. Para ele não cabia tratar do melhor ESTADO, por todos desejado, mas uma UTOPIA. Ele tratava do ESTADO REAL, capaz de impor a ORDEM. Ele considerava os idealistas como PLATÃO, ARISTÓTELES e SÃO TOMÁZ DE AQUINO como desprovidos de realidade. Seu pensamento se volta para os historiadores antigos como TÁCITO, POLÍBIO e TITO LÍVIO, que têm como ponto de partida a REALIDADE CONCRETA.
"A ORDEM, produto necessário da política, não é natural, nem a materialização de uma vontade extraterrena, e tampouco resulta do jogo de dados do acaso. Ao contrário, A ORDEM tem um imperativo: deve ser construida pelos homens para se evitar o caos e a barbarie, e, uma vez alcançada, ela não será definitiva, pois há, sempre, em germe, o seu trabalho em negativo, isto é, a ameaça de que seja desfeita". (2).
Ao analisar a organização do ESTADO, MAQUIAVEL antecipa aspectos da LUTA DE CLASSES, ao afirmar que a instabilidade é fruto de duas forças opostas, sempre presentes em todas as sociedades, "uma das quais provém de não desejar o povo ser dominado nem oprimido pelos grandes, e a outra de quererem os grandes dominar e oprimir o povo".(3).
Em contraposição ao pensamento cristão então vigente, segundo o qual BOM é sempre angelical, longe das tentações terrenas, MAQUIAVEL afirma que O PODER, A HONRA, A GLÓRIA, típicas tentações mundanas, são BENS a serem buscados e valorizados.
"Até hoje ninguém disse que NICCOLÒ MACHIAVELLI é um carola. Vamos chamá-lo de NICCOLÒ, pois é assim que ele se refere a si mesmo... e é assim que os grandes homens são tratados - pelo primeiro nome".(4).

Numa época em que a IGREJA exercia enorme influência e demonstrava seu poderio através da INQUISIÇÃO, vamos encontrar NICCOLÒ falando sarcasticamente dos religiosos e contando anedotas sobre padres e papas, como em suas peças CLÍZIA e MANDRÁGORA.
Mesmo assim, "por desígnio da fortuna", como dizia, a INQUISIÇÃO não o flagrou em blasfêmia, nem conseguiu ousar contra ele.
Sempre voltado para a leitura e os escritos, vivendo por muito tempo como funcionário público, NICCOLÒ confessa que nada entende de comércio, de negócios ou de dinheiro, "nem sobre os ganhos, nem sobre as perdas... " .

Sua formação política foi marcada por quatro grandes acontecimentos:

-A Conspiração PAZZI, de l478;
-A Batalha de POGGIO IMPERIALI, em 1479;
-A morte de LORENZO DE MÉDICI, em 1492;
-A entrada de CARLOS VIII, da França, em 1494.

Estes acontecimentos alteraram profundamente a estrutura política da FLORENÇA de NICCOLÒ e influenciaram decididamente no seu pensamento.
Tendo vivido à época das Grandes Descobertas, sendo conterrâneo de AMÉRICO VESPUCCI, NICCOLÒ dirá que "não menos perigoso do que procurar mares e terras desconhecidas, é buscar novos princípios ordenadores que apontem reformas e novas disposições constitucionais.”
Estudando a conduta humana, NICCOLÒ afirma que "os homens agem por necessidade ou por escolha" . Para ele, um ato só pode ser moral se houver escolha. Falando do livre arbítrio, afirma que os atos designados pelos conceitos de BEM e MAL são humanamente desejados e, assim, sujeitos a juízo moral. Para ele, nem sempre o MAL é mal, como o BEM sempre será BEM na ótica de quem o pratica.

Casado com MARIETTA, que lhe deu os filhos PRIMAVERA, BERNARDO, GUIDO, TOTTO, PIERO e BACCINA, não era o espelho do bom chefe de família. Desapegado do dinheiro, sua família passou por dificuldades. Conseguiu , contudo, graças à habilidade em usar dos amigos influentes, dar boa formação a todos os filhos, "reservando à IGREJA o filho GUIDO, para apaziguar os ânimos do Papa. ".

Aos 56 anos, no apogeu de sua fama e criação cultural, apaixona-se loucamente por BARBERA, famosa cantora, para quem escreve a peça CRÍZIA. Este amor fogoso e destemperado provocou a chacota e a inveja dos amigos, muitos dos quais foram também pretendentes dos carinhos de BARBERA, sem os alcançarem. NICCOLÒ lhes dizia: "amem-na, mesmo sem a alcançarem, pois ela verá, no inútil esforço de vocês, a força da minha perdida paixão. ".

Apesar de BARBERA, dos livros e dos filhos, o maior amor de NICCOLÒ foi a POLÍTICA. Por ELA tudo ao seu redor lhe parecia secundário e sem brilho.

Assim era NICCOLÒ MACHIAVELLI, o florentino que foi MESTRE no passado e continua MESTRE no presente... seja para o BEM, seja para o MAL.

4 - Estudo de “O PRÍNCIPE”

CAPÍTULO I - ESPÉCIES DE PRINCIPADOS E COMO ADQUIRI-LOS

Todos os ESTADOS existentes até a presente data "foram e são repúblicas ou principados ".
Há principados hereditários, herdados pelo príncipe dos seus antepassados, e os há novos, oriundos do domínio habitual de um senhor ou conquistados pela força das armas, "pela fortuna ou pelo mérito". 
Nos principados hereditários é muito mais fácil governar... "basta apenas conservar neles a ordem... e, em seguida, contemporizar com os acontecimentos... ".

CAPÍTULO II - OS PRINCIPADOS HEREDITÁRIOS

Se o príncipe hereditário não possui "extraordinários defeitos", é lógico que terá mais chances de ser benquisto, pois todos já estão acostumados com ele e com os seus antepassados.

CAPÍTULO III - DOS PRINCIPADOS MISTOS

Tratando-se de um principado não inteiramento novo, mas de um agregado a outro hereditário, as dificuldades que surgem são oriundas da impossibilidade de satisfazer aos novos súditos sem desagradar aos antigos.
"Assim, são teus inimigos todos aqueles que se sentem ofendidos pelo fato de ocupares o principado; e também não podes conservar como amigos aqueles que te puseram alí, pois não serão satisfeitos como pensavam"..
O príncipe pode usar da sagacidade de, nas terras conquistadas, somente fazer desaparecer a linhagem do antigo senhor, mantendo inalteradas as demais situações. Outra prática eficaz é ir o príncipe habitar na terra conquistada, evitando, com a sua presença, que seus representantes cometam desordens e injustiças que desagradem ao povo.
Pode, também, recorrer à formação de colônias, com o deslocamento de habitantes do principado hereditário para as terras conquistadas. Nesse caso, "os únicos prejudicados serão aqueles a quem se tomam os campos e as casas, para dá-los aos novos habitantes. Mas os prejudicados, sendo minoria e estando dispersos e reduzidos à pobreza, não poderão causar danos ao príncipe ". Quanto aos que não perderam nada, ficarão quietos para que nada lhes aconteça.
"Deve-se notar que os homens devem ser mimados ou exterminados, pois se se vingam de ofensas leves, das graves já não podem fazê-lo. Assim, a injúria que se faz deve ser tal, que não se tema vingança".
O príncipe deveria ser bom, honesto, liberal, cumpridor de promessas, conforme os ensinamentos cristãos? Há virtudes que são vícios, e vícios que são virtudes. O príncipe que queira manter-se no poder "não deve ter receios de incorrer em defeitos e opróbios, se tal for indispensável para salvar O ESTADO".

CAPÍTULO IV - POR QUE RAZÃO O REINO DE DARIO, OCUPADO POR ALEXANDRE, NÃO SE REBELOU CONTRA OS SUCESSORES DESTE


Os ESTADOS conquistados que são governados por membros da linhagem do príncipe, são mais difíceis de controlar do que aqueles onde os senhores anteriores que apoiaram a conquista, são mantidos no poder como fiéis vassalos do novo príncipe -"o povo os ama por lhes conhecer as virtudes...".
Alexandre foi mestre em salvaguardar a honra dos nobres que o apoiaram na conquista do Reino de Dario.

CAPÍTULO V - DA MANEIRA DE CONSERVAR CIDADES OU PRINCIPADOS QUE, ANTES DA OCUPAÇÃO, SE REGIAM POR LEIS PRÓPRIAS

Quando se conquista um país acostumado a viver segundo as suas próprias leis e em liberdade, três maneiras há de proceder para conservá-lo: ou destruí-lo; ou ir morar nele; ou deixá-lo viver com as suas leis, exigindo-lhe um tributo e nele colocando para governar pessoas fiéis ao conquistador.
"Nas repúblicas, há mais vida, o ódio é mais poderoso, maior é o desejo de vingança. Não deixam nem podem deixar repousar a memória da antiga liberdade".

CAPÍTULO VI - DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM PELAS ARMAS E NOBREMENTE


"Os homens trilham quase sempre estradas já percorridas.Um homem prudente deve assim escolher os caminhos já percorridos pelos grandes homens e imitá-los...".
Quem é prudente mira acima do desejado para alcançar, com certeza, o objetivo que almeja. Considere-se que nada há mais difícil, nem passível de fracasso, nem mais perigoso, do que estabelecer-se novas leis. Serão inimigos naturais da nova ordem todos os que tinham lucros fáceis com a ordem anterior. Quanto aos que se beneficiarão das novas leis, as defenderão com timidez, pois é próprio do ser humano somente crer no que já apresente resultados.

CAPÍTULO VII - DOS PRINCIPADOS NOVOS QUE SE CONQUISTAM COM ARMAS E VIRTUDES DE OUTREM

"Aqueles que somente por fortuna se tornam príncipes, pouco trabalho têm para isso, é claro, mas se mantêm muito penosamente".
O poder alcançado graças à benevolência dos poderosos e corruptos, estará assentado sobre bases sem firmeza, que ruirão ao primeiro vendaval. A queda poderá ser adiada, no entanto, seja pela força, que é cruel com os fracos, seja com facilidades para os fiéis que, uma vez corrompidos, se tornam tão perigosos quanto os inimigos.

CAPÍTULO VIII - DOS QUE ALCANÇARAM O PRINCIPADO PELO CRIME

"Há duas maneiras de tornar-se príncipe, e que não se podem atribuir totalmente à fortuna ou ao mérito.Estas maneiras são: Chegar ao principado pela maldade, por vias celeradas, contrárias a todas as leis humanas e divinas; e tornar-se príncipe por mercê do favor de seus conterrâneos".
Deve o conquistador mal intencionado, alcançando a conquista pretendida, executar todas as maldades que acha convenientes de uma só vez, de forma que não precise repeti-las, para que o injuriado povo esqueça logo da injúria sofrida. "... e os benefícios devem ser realizados pouco apouco, para que sejam melhor saboreados..." pois o bem não beneficia a quem o faz, já que ninguém agradecerá por sua prática.

CAPÍTULO IX - DO PRINCIPADO CIVIL


"Quando um cidadão, não por suas crueldades ou outra qualquer intolerável violência, e sim pelo favor dos concidadãos, se torna príncipe de sua pátria - o que se pode chamar principado civil (e para chegar a isso não é necessário grandes méritos nem muita sorte, mas antes uma astúcia feliz), digo que se chega a esse principado ou pelo favor do povo ou pelo favor dos poderosos. É que em todas as cidades se encontram estas duas tendências diversas e isto nasce do fato que o povo não deseja ser governado nem oprimido pelos grandes e estes desejam governar e oprimir o povo. Destes dois apetites diferentes nasce nas cidades um destes três efeitos: principado, liberdade, desordem.".
O principado surge pela ação do povo, que escolhe um dos seus para príncipe e dá-lhe autoridade para defendê-lo, ou por iniciativa dos poderosos, que fazem príncipe a um dos seus para, à sua sombra, melhor satisfazerem seus desígnios.
O príncipe feito pelos poderosos tem enorme dificuldade para governar, porque ao seu lado existem muitos iguais a tentar derrubá-lo. Já o príncipe escolhido pelo povo está sozinho no poder, e é fácil satisfazer ao povo que o escolheu, "porque o objetivo do povo é mais honesto do que o dos poderosos; estes querem oprimir e aqueles não ser oprimido". O príncipe escolhido pelo povo deve estar sempre junto dele, que o salvaguardará dos ataques dos poderosos.

CAPÍTULO X - COMO SE DEVE MEDIR AS FORÇAS DE TODOS OS PRINCIPADOS


"Os homens são sempre contrários aos empreendimentos onde existe dificuldade; e não se pode ver facilidade no assalto a quem possui um Estado forte e não é odiado pelo povo".
Um Estado forte é aquele que, usando dos meios disponíveis, prepara sua milícia para defendê-lo, e cujo príncipe angaria a simpatia do povo para que este esteja do seu lado, mesmo com risco de vida. Além do mais, deve o príncipe incutir no pensamento do povo que o conquistador é cruel e vingativo, razões mais do que suficientes para que todos fiquem temerosos e participem da resistência em caso de ataque.

CAPÍTULO XI - OS PRINCIPADOS ECLESIÁSTICOS


"E sendo eles regidos por poderes superiores, aos quais a razão humana não atinge, deixarei de falar a respeito; estabelecidos e mantidos por Deus tais Estados, seria de homem presunçoso e temerário agir de outra forma".
O poder temporal da Igreja não pode ser subestimado, pois ela tem forças para destronar reis e substituí-los por barões fiéis ao Papa. Seus Estados não são atacados, seus súditos não fazem exigências, a fome de seu povo é saciada com a promessa da salvação.

CAPÍTULO XII - DOS GÊNEROS DE MILÍCIAS E DOS SOLDADOS MERCENÁRIOS


"E as principais bases que os Estados têm, sejam novos, velhos ou mistos, são boas leis e boas normas. E como não podem existir boas leis onde não há armas boas, e onde há boas armas convém que existam boas leis, referir-me-ei apenas às armas."
As forças mantidas com o uso de soldados mercenários não são confiáveis. Além da insolência própria de quem dispõe da força, são covardes quando se deparam com o inimigo, pois não possuem ideal a defender. Serão soldados fiéis apenas na paz, quando nada têm a temer, e o ganho é seguro e garantido.
O Estado prudente envia para a frente de batalha seu príncipe como comandante e seu povo como combatente. O comandante príncipe, senhor na guerra e na paz, será seguido fielmente pelo povo que, mais do que outrem, tem todos os motivos para defender sua pátria. Nestas circunstâncias, e se não surgirem empecilhos, a vitória é certa.

CAPÍTULO XIII - DAS TROPAS AUXILIARES, MISTAS E NATIVAS

Tropas auxiliares são as que algum poderoso vizinho manda como ajuda ao príncipe. Se perderem, porão a culpa no comandante; se ganharem, tomarão o poder para seu senhor, destronando o príncipe. Só servem para demonstrar volume frente ao inimigo, mas é preciso tê-las sob constante suspeita e controle. "Valha-se, portanto, destas tropas quem não quiser vencer, porque são muito mais perigosas do que as mercenárias".
"Os príncipes prudentes repeliram sempre tais forças, para valer-se das suas próprias, preferindo antes perder com estas a vencer com auxílio das outras, considerando falsa a vitória conquistada com forças alheias".

CAPÍTULO XIV - DOS DEVERES DO PRÍNCIPE PARA COM AS SUAS TROPAS

O verdadeiro príncipe, para ser amado e respeitado por seus súditos, deve apaixonar-se pela arte da guerra, dando-lhe mais importância que aos luxos e faustos da vida mundana. Não espere ser respeitado nem obedecido aquele que desconhece o regulamento e a disciplina da guerra; antes, será vilipendiado por todos, que o julgarão fraco e despreparado para a função de príncipe.
"Um príncipe deve, pois, não deixar nunca de se preocupar com a arte da guerra e praticá-la na paz ainda mais mesmo que na guerra e isto pode ser conseguido por duas formas: pela ação ou apenas pelo pensamento".
O príncipe, nos tempos de paz, deve desenvolver atividades que exijam sacrifícios e levar os seus súditos a procederem da mesma forma. Assim, manterá o espírito e o corpo preparados para a adversidade.

CAPÍTULO XV - DAS RAZÕES POR QUE OS HOMENS E, ESPECIALMENTE, OS PRÍNCIPES SÃO LOUVADOS OU VITUPERADOS

Um príncipe, para manter-se no poder, deve aprender a ser mau e saber em quais circunstâncias pode usar de sua maldade.
"Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo porque se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz, aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar; e o homem que quiser fazer profissão de bondade, é natural que se arruíne entre tantos que são maus".
Não são somente as boas ações que fazem os homens serem notados; as reprováveis também o fazem. Um príncipe precisa, muitas vezes, usar de certas atitudes tidas como defeitos para garantir a segurança e o bem-estar seus e do seu Estado. Isto é tão virtude quanto ser bom, generoso, humanitário ou leal. A circunstância é que qualifica.

CAPÍTULO XVI - DA LIBERALIDADE E DA PARCIMÔNIA

"Assim, é mais prudente ter a fama de miserável, o que acarreta má fama sem ódio, do que, para conseguir a fama de liberal, ser obrigado a incorrer também na de rapace, o que constitui uma infâmia odiosa".
O príncipe que gasta o que é de outrem fora do seu reino, não fica rebaixado; pelo contrário, tem a reputação elevada, pois distribui benesses ao povo sem onerá-lo com impostos e taxas. Nocivo é gastar as próprias economias e as do povo. Se o governante gasta, com sua liberalidade, tudo que possui, vai roubar do povo para continuar sua fama de liberal.
Ser miserável é resguardar a possibilidade de, em gastando um pouco de vez em quando, agradar ao povo e parecer liberal.

CAPÍTULO XVII - DA CRUELDADE E DA PIEDADE - SE É MELHOR SER AMADO OU TEMIDO


O príncipe precisa ser visto como piedoso e não como cruel, mas deve ser comedido na sua piedade. Se, para manter a ordem e a lei, ele precisa agir com certa crueldade, estará sendo mais piedoso do que aqueles que, para apresentarem clemência e humanidade, permitem que a desordem traga a morte e a rapinagem. Os males da desordem afetam a todos, enquanto que a eventual crueldade do príncipe somente atinge as suas vítimas.
"E os homens hesitam menos em ofender aos que se fazem amar do que aos que se fazem temer, porque o amor é mantido por um vínculo de obrigação, o qual, devido a serem os homens pérfidos, é rompido sempre que lhes aprouver, ao passo que o temor que se infunde é alimentado pelo receio de castigo, que é um sentimento que não se abandona nunca".
Deve o príncipe evitar causar danos às posses do povo, "porque os homens esquecem mais depressa a morte do pai do que a perda do patrimônio".

CAPÍTULO XVIII - DE QUE FORMA OS PRÍNCIPES DEVEM GUARDAR A FÉ DA PALAVRA DADA


"Deveis saber, portanto, que existem duas formas de se combater: uma, pelas leis, outra, pela força. A primeira é própria do homem; a segunda, dos animais. Como, porém, muitas vezes, a primeira não seja suficiente, é preciso recorrer à segunda".
O príncipe precisa saber dosar o uso do lado homem e do lado animal. Desse uso equilibrado nasce a estabilidade. "Precisa, pois, ser raposa para conhecer os laços e leão para aterrorizar os lobos".
Guardar a palavra dada em prejuízo próprio é falta de prudência. Além do mais, como nem todos os homens são bons, não há por que ser fiel ao compromisso. "Se os homens todos fossem bons, este conceito seria mau".
A habilidade em ser raposa é muito importante, mas é preciso disfarça-la bem, simulando e dissimulando. O príncipe não precisa reunir todas essas qualidades, basta fingir que as possui. Se as possuir e as usar todas, termina por sair prejudicado, ao passo que,fingindo possuí-las, sairá beneficiado.
É necessário ter o ânimo de "...um espírito pronto a se adaptar às variações das circunstâncias e da fortuna e a manter-se, tanto quanto possivel, no caminho do bem, mas pronto, igualmente, a enveredar pelo do mal, quando for necessário".
Deve todo governante aparentar piedade, fé, integridade, humanidade, religião, mesmo que não as aprecie. Os homens, normalmente, julgam pelo que vêem e não pelo que sentem - "assim, todos verão o que pareces, mas poucos o que és realmente, e estes poucos não têm a audácia de contrariar a opinião dos que têm por si a majestade do Estado".
O que importa é o êxito, pelo bem ou pelo mal. Procurar vencer, sejam quais forem os meios, será sempre louvado, "pois o vulgo é levado pelas aparências e pelos fatos consumados, e o mundo é constituído pelo vulgo".

CAPÍTULO XIX - DE COMO SE DEVE EVITAR O SER DESPREZADO E ODIADO

"Um príncipe deve ter duas razões de receio: uma de ordem interna, por parte de seus súditos, outra de ordem externa, por parte dos poderosos de fora. Defender-se-á destes com boas armas e com bons aliados; e se tiver armas terá sempre bons amigos. ". No lado interno, tudo será um reflexo do que ocorre no lado externo. Existe, porém, o permanente risco dos conspiradores que, quando tudo está calmo, agem na calada da noite, solapando o poder. Um dos modos mais eficazes de combater as conspirações é não ser odiado pelo povo, pois os conspiradores sempre acham que o povo ficará do seu lado. Se o príncipe for benquisto, os conspiradores temerão a reação popular e desistirão do seu intento.
Nos Estados bem organizados, administrados por prudentes príncipes, os grandes jamais serão levados ao desespero, e o povo sempre terá satisfeitos os seus anseios, de forma a afastar o risco das conspirações.
Aos príncipes devem caber os atos de graça e benevolência, ficando para outros a aplicação de penas e castigos.
Outro cuidado que um governante deve ter é com os seus soldados: eles devem estar satisfeitos para não o traírem, mas não podem se julgarem poderosos o bastante para massacrarem o povo, pois este debitará ao príncipe comandante todos os opróbios que vier a sofrer. "É de notar-se, aqui, que o ódio se adquire quer pelas boas, quer pelas más ações".

CAPÍTULO XX - SE AS FORTALEZAS E MUITAS OUTRAS COISAS QUE DIA A DIA SÃO FEITAS PELO PRÍNCIPE SÃO ÚTEIS OU NÃO

"... um príncipe sábio, quando tiver ocasião, deve fomentar com astúcia certas inimizades contra si mesmo, a fim de que, pela vitória sobre os inimigos, mais se possa engrandecer".
A um governante astuto, cabe manter armado o seu povo, não só para demonstrar sua confiança, mas também para poder dessa força tirar proveito. O povo armado pelo governante sente-se lisonjeado com a confiança e, agradecido, não ergue as armas contra quem o armou, senão contra seus inimigos. Deve o príncipe testar esta fidelidade de forma mais ou menos costumeira, se mais não for, pelo menos para manter os ânimos acirrados a seu favor. Por outro lado, se o povo sente que seu príncipe se preocupa com a sua segurança, por ele vela e sempre estará a seu lado.
"Nunca um príncipe desarmou os seus súditos, antes, sempre que os encontrou desarmados, armou-os. Essas armas ficarão tuas e se tornarão fiéis aqueles que te eram suspeitos, mantêm-se fiéis aqueles que já o eram, e de súditos se transformam em teus auxiliares".

CAPÍTULO XXI - O QUE A UM PRÍNCIPE CONVÊM REALIZAR PARA SER ESTIMADO

"Nada faz estimar tanto um príncipe como os grandes empreendimentos e o dar de si raros exemplos".
A neutralidade não deve ser hábito de um príncipe. Os inimigos sempre rogarão para que ele se mantenha neutro, mas os amigos lhe pedirão que pegue em armas e vá ajudá-los. O verdadeiro príncipe é astuto: jamais fará aliança com quem for mais poderoso, pois, no caso de vitória, certamente será subjugado pelo aliado.
"Não pense nunca nenhum governo poder tomar decisões absolutamente certas; pense antes em ter que tomá-las sempre incertas, pois isto está na ordem das coisas, que nunca deixa, quando se procura evitar algum inconveniente, de incorrer em outro. A prudência está justamente em saber conhecer a natureza dos inconvenientes e adotar o menos prejudicial como sendo bom".

CAPÍTULO XXII - DOS MINISTROS DOS PRÍNCIPES

"Há três espécies de cabeças - uma, que entende as coisas por si mesma, outra que sabe discernir o que os outros entendem, e, finalmente, uma que não entende nem por si, nem sabe ajuizar do trabalho dos outros".
É de grande importância para um governante a escolha dos seus ministros, que serão conseqüência da sua prudência. Quando se conjectura sobre as qualidades de um príncipe, logo se verifica qual o tipo de pessoas que ele mantém a seu redor, como seus auxiliares.
O verdadeiro ministro deve pensar mais no príncipe do que em si e jamais propor ações que não sejam do estrito interesse do Estado. Por outro lado, o príncipe, para garantir a permanência do bom ministro, deve louvá-lo em público, enriquecê-lo, de modo que as honrarias que receba, bem como as riquezas que lhe são agregadas, não o façam mais desejar, pondo em risco o patrimônio do Estado.

CAPÍTULO XXIII - DE COMO SE EVITAM OS ADULADORES

"Um príncipe prudente deve, portanto, conduzir-se de uma terceira maneira, escolhendo no seu Estado homens sábios, e só a estes deve dar o direito de falar-lhe a verdade , porém, apenas das coisas que ele lhes perguntar. Deve consultá-los a respeito de tudo e ouvir-lhes a opinião e deliberar depois como bem entender e, com os conselhos daqueles, conduzir-se de tal modo que eles percebam que com quanto mais liberdade falarem, mais facilmente as suas opiniões serão seguidas".
O príncipe não deve jamais permitir que lho aconselhem sobre o que não solicitou. Esta atitude evitará a ação dos aduladores, que vivem de tentar adivinhar o que o governante pensa, para sugerir-lhe o que lhes convém, em detrimento do desejo do próprio governante.
Na verdade, "... os bons conselhos, de onde quer que provenham, nascem da prudência do príncipe e não a prudência do príncipe dos bons conselhos".

CAPÍTULO XXIV - POR QUE OS PRÍNCIPES DE ITÁLIA PERDERAM SEUS ESTADOS

"Os homens são muito mais sujeitos às coisas presentes do que às passadas e, quando encontram o bem naquelas, alegram-se e nada mais procuram; antes, tomarão a defesa do príncipe se este não falhou nas outras coisas às suas promessas".
Caso se busquem as razões por que certos príncipes de Itália perderam seus Estados, ver-se-á que eles, além de se descuidarem das armas, foram hostilizados pelo povo, não neutralizaram os grandes, cometeram defeitos que tinham como virtudes, o que lhos enfraqueceram.
É preciso, na bonança, lembrar que poderá vir a tempestade e preparar-se para a sua vinda.
Os bons meios de defesa são os que dependem do próprio valor; estes, por certo, serão duradouros e seguros.

CAPÍTULO XXV - DE QUANTO PODE A FORTUNA NAS COISAS HUMANAS E DE QUE MODO SE DEVE RESISTIR-LHE

"Não obstante, e para que o nosso livre arbítrio não desapareça, penso poder ser verdade que a fortuna seja árbitra de metade de nossas ações, mas que, ainda assim, ela nos deixa governar quase a outra metade. Comparo-a a um desses rios impetuosos que, quando se encolerizam, alagam as planícies, destroem as árvores, os edifícios, arrastam montes de terra de um lugar para outro: tudo foge diante dele, tudo cede ao seu ímpeto, sem poder obstar-lhe e, se bem que as coisas se passem assim, não é menos verdade que os homens, quando volta a calma, podem fazer reparos e barragens, de modo que, em outra cheia, aqueles rios correrão por um canal e o seu ímpeto não será tão livre nem tão danoso. Do mesmo modo acontece com a fortuna: o seu poder é manifesto onde não existe resistência organizada, dirigindo ela a sua violência só para onde não se fizeram diques e reparos para contê-la".
O que se vê hoje são príncipes que saltam do sucesso para a ruína, sem que tenham ocorrido mudanças na sua natureza ou qualidades. Isto advém do fato de esses príncipes se apoiarem inteiramente na fortuna e, assim, ficarem sujeitos às suas variações.
Sempre há de se preservar o sucesso, eliminando as causas de problemas para que estes não se repitam, e, sobretudo, buscando medidas preventivas contra prováveis adversidades, de modo a garantir a tranquilidade no futuro.
"Estou convencido de que é melhor ser impetuoso do que circunspecto, porque a sorte é mulher e, para dominá-la, é preciso bater-lhe e contrariá-la. A sorte, como mulher, é sempre amiga dos jovens porque são menos circunspectos, mais ferozes e com maior audácia a dominam"

CAPÍTULO XXVI - EXORTAÇÃO AO PRÍNCIPE PARA LIVRAR A ITÁLIA DAS MÃOS DOS BÁRBAROS

"Espera a Itália aquele que lhe possa curar as feridas e ponha fim ao saque..., aos tributos..., e que cure as suas chagas já há muito tempo apodrecidas. Vê-se que ela roga a Deus envie alguém que a redima dessas crueldades e insolências dos estrangeiros. Vê-se ainda, que se acha pronta e disposta a seguir a bandeira, uma vez que haja quem a levante".
Tudo aqui favorece a audácia e a coragem, desde os exemplos do passado, até a história presente. Falta, tão somente, o surgimento de um príncipe que empunhe esta causa como sua, leve-a adiante com o apoio de todo o povo e dê à Itália a grandeza dos seus antepassados.
Aqui o povo é valoroso, porém carece de chefes. Os italianos sempre se saíram bem , seja nos duelos, seja nas batalhas, mas sempre tiveram valorosos chefes a lhes guiar e a lhes indicar o caminho da glória.
"E não se vê, atualmente, em quem ela possa esperar mais do que na vossa ilustre casa, a qual, com a fortuna e valor, favorecida por Deus e pela Igreja, poderá constituir-se cabeça desta redenção".

5 - O que pensa MAQUIAVEL

"Io rido, e il rider mio non passa dentro.
Io ardo, e l'arsion mia non par di fore."
"Rio, mas este riso não me penetra. 
Ardo, e meu ardor não transparece."

SOBRE A DOR E O MEDO
"E de novo replico que, sem a força, as cidades não se mantêm".
A tortura não afastou do raciocínio de Niccolò o papel da DOR e do MEDO na formação da sociedade. Sua argumentação é de que o MEDO DA DOR, pela tortura, faz todos temerem a autoridade e evitarem agir em agravo da lei.

NOÇÃO DE JUSTIÇA
Absolutista empedernido, Niccolò fez sua doutrina afirmando que a compreensão de JUSTIÇA vem das noções de gratidão e ingratidão, de bem e mal, de obediência e desobediência. "Devido à consciência da justiça dos homens, no momento de escolher um governante, já não apoiavam o mais enérgico, e sim o mais prudente e mais justo." (5)

DA CRUELDADE
Segundo Niccolò, as pessoas, como espectadoras ou reunidas em multidões, às vezes mostram um impulso atávico de participar dos derramamentos de sangue ou de se sentir hipnotizadas pela crueldade, como o olhar de uma serpente. "Somente o homem outro homem mata, crucifica e espolia."(6). O Florentino atribui à multidão a reação mórbida do gozo ante a crueldade, que sacia os ânimos após sua prática.

SOBRE AS LEIS E OS COSTUMES
"E onde uma coisa funciona bem por si mesma, sem a lei, a lei não é necessária. Mas quando falta esse bom costume, logo a lei é necessária."(7).
Dito de forma um pouco diversa, temos: Assim como os bons costumes, para se manter, precisam das leis, da mesma forma as leis, para ser observadas, precisam dos bons costumes.

DO CUMPRIMENTO DAS LEIS
Como secretário florentino, cabia a Niccolò Machiavelli defender o cumprimento das leis. Sua maior amargura, nesse campo, eram as próprias autoridades que descumpriam os regulamentos. "Os dirigentes deveriam obedecer às leis que eles próprios criam ou defendem.". "Não creio que exista pior exemplo do que fazer uma lei e não a observar; e tanto mais se não foi observada por quem a fez".(8).


AMOR À PÁTRIA E À FAMÍLIA
Niccolò já colocava a Família como célula inicial da Pátria. Para ele, quem não fosse capaz de amar os seus, somente poderia ver a Pátria como serventia. Pátria e Família deveriam estar intrinsecamente ligados por laços de amor, não só abstratos, mas também práticos, por ações concretas.

CONCEITO DO HEREDITÁRIO
O autor de "O PRÍNCIPE" cria uma relação absoluta entre estabilidade e hereditariedade: As coisas seguras são as que vêm da origem, do antigo, das tradições. Os princípios originais das organizações "deviam ter em si alguma bondade, mediante a qual possam retomar sua primeira reputação e seu primeiro crescimento". (9).

PÁTRIA E ESTADO
Niccolò escreve muito sobre a Pátria e o Estado. A Pátria é um Estado quando considerada em particular e de forma possessiva como a pátria de alguém. O Estado, para ele, é a Pátria considerada em abstrato. "Para alguns teóricos, o conceito de Estado formulado por Maquiavel é a forma mais precisa de configurar a passagem da Cidade-Estado para o Estado Nacional". (10). Niccolò considera QUE A PERDA DO ESTADO É O QUE DE MAIS CRUEL PODE OCORRER AOS HOMENS.

SOBRE A GUERRA
"Justa é a guerra para quem ela é necessária, e piedosas as armas quando não há esperança a não ser nas armas".(11).
Ao falar da ruína que a guerra traz, Niccolò afirma que todo o sofrimento se justifica se advém a vitória e o êxito pretendido. O soldado que morre com a espada na mão, enfrentando o inimigo de sua pátria, não é um horror: é uma visão de honra e bravura. A vítima é uma coisa, o guerreiro é outra. Para ele, o bom governante tem de "amar a paz e saber fazer a guerra."

NOÇÃO DE FELICIDADE
Niccolò define felicidade como boa sorte, unidade, concórdia. O homem feliz é aquele que adequa seu modo de proceder às qualidades e possibilidades do seu tempo.

SOBRE A LIBERDADE
O "republicano" Maquiavel considera que liberdade é poder participar das decisões do Estado, sob o domínio de um bom príncipe. O bem comum, por todos usufruído, é o melhor resultado da plena liberdade. Na sua concepção, a República encarna todo o conceito de liberdade.
"A utilidade comum que se retira do viver livre é poder gozar suas coisas livremente, sem qualquer suspeita...". (12)

DA FINALIDADE DO ESTADO
"Deus faz os homens, eles se juntam". (13).
O Estado encontra sua perfeição constitucional, seu verdadeiro e perfeito fim, numa pátria em que o bem comum seja observado ao máximo. O Estado nasce da disposição dos homens de o formarem, unindo-se pelos mesmos objetivos, sentimentos e interesses. O Estado visa ao bem comum dos partícipes.

SOBRE A PROBIDADE E A POBREZA
"Nasci pobre e aprendi primeiro a sofrer do que a gozar". Entende Niccolò que a melhor prova que um servidor do Estado pode apresentar de probidade é não ter amealhado riqueza quando a serviço do Estado. "De minha fidelidade e bondade é testemunho minha pobreza".

DA POMPA E MAJESTADE DO ESTADO
Niccolò atribui os efeitos do temor e da impressão de poderio do Estado à sua grandiosidade, sua majestade. Cita o rito da Igreja como exemplo de pompa que impressiona e atemoriza.

DO DIREITO DAS ARMAS
Colonialista, Niccolò defende as conquistas armadas. "As conquistas são justas e legítimas ou injustas e ilegítimas. Denomino justas e legítimas não apenas as que se fazem por tratados e convenções, mas, ainda, aquelas que se fundam no direito das armas, estas sim verdadeiras conquistas".(14)

NOÇÃO DE REPÚBLICA
"Todos os Estados, todos os domínios que exerceram e exercem poder sobre os homens, foram e são, ou REPÚBLICAS ou PRINCIPADOS".
Com essa afirmação, classifica Maquiavel as formas de governo em termos dualistas: de uma parte,a monarquia, o poder singular; e, de outra parte, a República, ou poder plural. A República, segundo Maquiavel, abrange a aristocracia e a democracia". (15).

6-Aplicação Histórica do Pensamento de MAQUIAVEL
A simples análise dos fatos históricos ocorridos nos últimos quatro séculos, demonstram não somente que Maquiavel fez escola, mas que seu pensamento continua vivo e atuante. Para melhor demonstrar esta assertiva, vamos comparar algumas ocorrências ao longo do tempo e rebuscar os objetivos de seus autores e atores.

Após os Grandes Descobrimentos dos fins do Século XV e primeiras décadas do Século XVI, teve início o processo de ocupação das terras descobertas. Esta ocupação deu-se, sobremaneira, pelo massacre das populações autóctones (Incas, Maias, Astecas), ou pela destruição de todos os processos culturais que serviam de sustentáculo às etnias locais (Apaches, Cheyennes, Sioux etc). Nas nações onde se tornava necessário manter os povos originários em condições de serem explorados, utilizou-se do acirramento das discórdias locais para enfraquecer a unidade e favorecer o colonizador ( África, Índia, regiões da Ásia Central). Tem-se, aí, vivo, o mandamento de Maquiavel, quando afirmava que "deve o príncipe destruir toda a linhagem do governante anterior, de modo que o povo, submisso ao novo senhor, esqueça em definitivo o antecessor... ". De Pizarro, das Tropas da Rainha ou do Exército Federado pode-se afirmar que foram apenas ATORES em um cenário montado pelos países colonizadores para garantir a posse das terras conquistadas, em nome da Ordem, Moral e Religião do Mundo Civilizado.

O vendaval que varreu a França absolutista culminando com a Revolução, fez surgir as bandeiras de LIBERDADE, IGUALDADE E FRATERNIDADE. As elites permitiram que o vulgo tomasse ares de senhor, numa farra homérica de direitos e deveres. A tempestade que se seguiu ao vendaval trouxe no seu bojo o TERROR, ponta de lança para o surgimento do Salvador da Pátria, na figura do BONAPARTE. Como dizia Maquiavel, "a crueldade é uma virtude, quando seu uso tem por finalidade o interesse maior do Estado". "
"Quando o príncipe está com os exércitos e tem sob o seu governo multidões de soldados, então é absolutamente necessário não se preocupar com o nome de cruel, porque sem este nome jamais se conservou um exército unido, nem disposto a qualquer refrega".

LENINE, na sua magistral obra "UM PASSO ADIANTE DOIS PASSOS ATRÁS", afirma que "fazer alianças com o inimigo futuro nada mais é do que sagacidade do governante que tem a seu cargo o interesse maior do povo... no mínimo, o inimigo de hoje verá que as forças que lhe fazem frente são numerosas e pensará duas vezes antes de atacar.". Falava ele da aliança dos bolcheviques com os cossacos para combater os Kulaks, ferrenhos adversários da Revolução de Outubro. Posteriormente, foi preciso mão de ferro para reprimir a força dos Cossacos, que se rebelaram contra o poder central.
O grande revolucionário VLADIMIR I. LENINE não teve pejo em usar de argumentos maquiavélicos para consolidar a revolução bolchevique, apesar da resistência que os mencheviques faziam a todo tipo de aliança fora das forças revolucionárias.

Conta a história positivista que o assassinato do Arquiduque Ferdinando, durante a Conferência de Serajevo, foi o estopim para a deflagração da Primeira Guerra Mundial... Sabe-se, no entanto, que as nações que compareceram a Serajevo para discutir a Paz, lá estiveram unicamente com o objetivo de garantir a Guerra, desejada por todos os que queriam uma nova ordem geográfica para a Europa, mediante uma paz negociada nos campos de batalha. Maquiavel foi categórico ao dizer que "a melhor garantia de paz é o estado permanente de guerra, que mantém o povo e o governante mobilizados pela pátria".

Ao assumir o trono da União Soviética, Joseph Stalin mobilizou milhares de camponeses das planícies ucranianas e bielorussas para povoar as terras devolutas ao norte do Cálcaso, férteis mas inóspitas, e por isso desabitadas. Para obter a partida pacífica dos colonos, arrasou suas plantações e salgou suas terras, de modo que eles já não tinham motivos para lá permanecerem. Fiel discípulo de Maquiavel, Stalin usou e abusou da crueldade em nome dos interesses do Estado...

Nove horas de uma manhã de sol fresco... sopra uma brisa leve que indica um dia ideal para um passeio ao campo, ou para visita aos parentes... Nas ruas de Londres o populacho, circunspecto, espera, nas calçadas das ruas e sacadas dos prédios, que passe a carruagem real, puxada por quatro parelhas de corcéis brancos e seguida por um batalhão de infantes garbosamente vestidos, conduzindo a Rainha e seu Consorte que vão à abertura do Parlamento. A pompa do espetáculo deixa o povo mudo de emoção e orgulho...Como NICCOLÒ tinha razão ao afirmar que uma das formas de garantir o respeito às instituições "é revesti-las de magnificência e pompa" !!!

Em pleno ESTADO NOVO, Getúlio Vargas tomou consciência de que precisava ganhar o apoio das massas, para dar um caráter populista a seu governo. Mandou produzir a Consolidação das Leis dos Trabalho, criou a simpática figura do Vogal Classista, copiou de Roosevelt a idéia dos sindicatos financiados por verbas públicas, fez nascer de parto fácil o paquiderme de muitos tentáculos a quem batizou de Instituto de Aposentadoria e Pensões... e tornou-se o Pai dos Pobres. Bem dizia Maquiavel: "se queres o apoio do povo, adula-o, nem que seja com simples guloseimas".

"Com o brasileiro não há quem possa..." era o refrão do hino verde-e-amarelo dos anos 70... No Maracanã, primeira fila da tribuna de honra, Emílio Garrastazu Médici aplaudia o 2o. gol do Flamengo, e gritava mais um juntamente com o povão... Pão e circo para o povo e a conspiração morrerá... Assim tem sido em todos os momentos difíceis da conjuntura nacional: promove-se um grande espetáculo, inventa-se um escândalo escabroso, prende-se um bicheiro ou dois, matam-se alguns bandidos, e a marcha continua... Em "DISCURSOS SOBRE A PRIMEIRA DÉCADA DE TITO LÍVIO", Maquiavel ensina que "é preciso manter a mente do vulgo ocupada com amenidades, de forma que sua razão não desperte para coisas que não interessem ao Estado e ao Governante". Como é atual esse ensinamento !!!

"Não deve o governante sagaz meter-se em aventuras das quais possa redundar prejuízo ou onde não haja possibilidade de haver ganhos para o Estado. Jamais pode um príncipe mostrar-se temerário, pois isto o desacreditará junto aos seus súditos". Por que haveria o Primeiro Mundo, Baluarte da Democracia, de envolver-se no genocídio praticado pelos sérvios nas regiões da antiga Federação Iugoslava? Lá não há petróleo, a terra é pobre, os caminhos são montanhosos, e o povo fede a cebola e alho... AH, COMO O IRAQUE É RICO DE RESERVAS INESGOTÁVEIS DE OURO NEGRO !!! Mas que mania têm esses árabes de ficarem ameaçando o povo israelita, cujo único defeito é ser o maior detentor da fortuna mundial !!!

As lições que Maquiavel ensinou têm sido bem aprendidas por todos os príncipes, individuais ou coletivos, efetivos ou de plantão, legais ou bastardos, ao longo desses cinco séculos. Sua lição maior, contudo, aquela que dizia que os conceitos de BEM ou MAL são relativos e que cabe ao governante aplicá-la de forma coerente, esta jamais foi aprendida (e se o foi, faltou audácia para pô-la em prática).

O grande pensador francês, ROUSSEAU, fazendo oposição aos críticos cáusticos da obra de Maquiavel, afirma que o autor de "O PRÍNCIPE" "fingindo dar lições aos nobres, deu grandes lições ao povo". A lógica dessa afirmativa reside no fato de que, sabendo-se como não agir, pode-se claramente encontrar o caminho para O AGIR CORRETAMENTE. NICCOLÒ foi um pensador contraditório, emitindo opiniões que mais adiante eram revistas por outros conceitos, mas os caminhos que traçou para a arte da política são uma inesgotável fonte de opções que, bem utilizadas, tanto servem ao BOM OBJETIVO quanto à mais nefasta das intenções. 

Afinal, o MESTRE FLORENTINO bem escreveu que "o melhor caminho para o paraíso passa necessariamente pelo inferno".

7-Notas Bibliográficas
(1). XAVIER, Lívio. Análise de"O Príncipe"
(2). MACHIAVELLI, Niccolò. "A Arte da Guerra"
(3). MACHIAVELLI, Niccolò. "O Príncipe"
(4). DE GRAZIA, Sebastian. "Maquiavel no Inferno"
(5). DE GRAZIA, Sebastian. "Maquiavel no Inferno"
(6). MACHIAVELLI, Niccolò. "O Asno"
(7). MACHIAVELLI, Niccolò. "Discursos..."
(8). MACHIAVELLI, Niccolò. "Histórias Florentinas"
(9). MACHIAVELLI, Niccolò. "Discursos"
(10). BONAVIDES, Paulo. "Ciência Política"
(11). MACHIAVELLI,Niccolò. "A Arte da Guerra"
(12). MACHIAVELLI,Niccolò. "Discursos..."
(13). MACHIAVELLI, Niccolò. "Mandrágora"
(14). MACHIAVELLI, Niccolò. "Discursos..."
(15). BONAVIDES, Paulo. "Ciência Política"


8-O Vocabulário de MAQUIAVEL

MAQUIAVEL usava palavras comuns com sentido diverso do usual, ou dava-lhes contexto erudito. Para facilitar a compreensão, selecionamos tais palavras e, dentro dos conceitos atuais do idioma, buscamos indicar o significado pretendido pelo AUTOR. Para tanto, utilizamos como fonte de pesquisa o "NOVO DICIONÁRIO", de AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA.

ASTUTO: Pessoa com a habilidade de enganar; malicioso,sagaz.
ATÁVICO: Oriundo dos antepassados; hereditário.
AUDÁCIA: Impulso para fazer atos difíceis;ousadia, coragem.
BENEVOLÊNCIA: Boa vontade; complacência com os inferiores.
BONANÇA: Tempos tranquilos.
BONDADE: Capacidade de fazer boas ações; clemência.
CAIR EM DESGRAÇA: Empobrecer-se; perder o emprego; tornar-se vítima de alguém poderoso.
CIRCUNSPECTO: Ponderado; prudente; que age com cuidados
COISA VÃ: Coisa inútil, sem valor ou sem aplicação.
CONTEMPORIZAR: Adaptar-se; ajustar-se às circunstâncias.
DISSIMULAR: Disfarçar; atenuar o efeito.
EFICAZ: Eficiente; que resulta no desejado.
FAUSTO: Luxo; ostentação; pompa.
FORTUNA: Sorte; casualidade; destino.
INJÚRIA: Insulto;ofensa à dignidade.
LIBERALIDADE: Generosidade; concessão de vantagens.
LINHAGEM: Família; geração; condição social.
MÉRITO: Merecimento; qualidade de quem foi ou é capaz de...
MIMAR: Atrair com agrados, presentes e promessas.
OPRÓBIO: Desonra extrema; injúria grave.
OS ANTIGOS: Os antepassados; os avós.
OS GRANDES: Os aristocratas; a nobreza.
PARCIMÔNIA: Ato ou costume de economizar;economia.
PRÍNCIPE: Governante; senhor.
PROBIDADE: Honestidade; integridade de caráter.
PRUDÊNCIA: Moderação no agir; cautela; precaução.
RAPACE: Que rouba.
RAPINAGEM: Hábito de roubar.
REDIMIR: Resgatar; compensar;fazer esquecer o mal sofrido; livrar.
RUÍNA: Destruição; perda dos bens materiais; decadência completa.
SAGACIDADE: Qualidade de quem é sagaz; perspicácia; astúcia, malícia.
SIMULAR: Aparentar saber; fingir ser.
TEMERÁRIO: Imprudente; audacioso; precipitado.
TRIBUTO: Riquezas pagas por um Estado dominado ao Estado dominador.
VASSALO: Subordinado; submisso; súdito.
VILIPÊNDIO: Desprezo; aviltamento.
VIRTUDE: Valor; qualidade de quem tem méritos; qualidade para a prática do bem.
VITUPERAR: Injuriar; insultar; desprezar.
VULGO: A plebe; a ralé; povão.


A Ordem Reina em Berlim

Rosa Luxemburgo

Janeiro de 1919

Fonte: The Marxists Internet Archive

A ordem reina em Varsóvia, anunciou o ministro Sebastini na Câmara francesa quando, depois de um terrível assalto sobre o bairro de Praga, a soldadesca de Suvarov entrou na capital polaca para começar o seu trabalho de carrascos contra os insurgentes.
A ordem reina em Berlim!, proclama triunfalmente a imprensa burguesa entre nós, bem como os ministros Ebert e Noske e os oficiais das tropas vitoriosas, para quem a gentalha pequeno burguesa de Berlim agita os lenços e emite os seus hurras. A glória e a honra das armas alemãs estão a salvo perante a história mundial. Os que combateram miseravelmente na Flandres e a Argonne podem agora restabelecer o seu nome mediante a brilhante vitória atingida sobre trezentos espartaquistas que lhes resistiram no prédio do Vorwaerts. As primeiras e gloriosas irrupções das tropas inimigas na Bélgica e os tempos do general Von Emmich, o imortal vencedor de Lieja, tornaram pálidos ao serem comparados com este das façanhas efetivadas pelos Reinhardt e os seus "camaradas" nas ruas de Berlim. Os delegados dos sitiados no Vorwaerts, enviados como parlamentares para tratarem da sua rendição, foram destroçados a pancadas de garrote pela soldadesca governamental, e isto aconteceu até tal ponto que não foi possível reconhecer os seus cadáveres. Quanto aos prisioneiros, foram pendurados dos muros e assassinados de tal maneira que muitos deles tinham o cérebro fora do seu crânio. Quem acha ainda, depois destes indignos fatos, nas vergonhosas derrotas impingidas pelos franceses, os ingleses e os americanos aos alemães? Spartakus é o inimigo e Berlim o campo de batalha em que somente sabem vencer os nossos oficiais. Noske, "o operário" é o general que sabe organizar a vitória ali onde Lundendorff fracassa.
Como não pensar aqui na matilha vitoriosa que impunha anos antes "a ordem" em Paris, nessa bacanal da burguesia sobre os cadáveres dos combatentes da Comuna? (1). Era a mesma burguesia que acabava de capitular vergonhosamente face aos prussianos e que tinha abandonado a capital do país ao inimigo de fora para fugir ela própria como o derradeiro dos covardes. Uma outra cousa foi depois face aos proletários parisienses mal equipados e sem armas. Contra as suas mulheres e os seus filhos... Então é que puderam mostrar a sua viril coragem os filhos do papai e toda a "juventude dourada" que mandava em Versalles! Estes filhos de Março, pregados até o dia anterior ante o inimigo estrangeiro,
souberam de repente ser cruéis e bestiais face a umas vítimas sem defesa, face a uns centos de prisioneiros e moribundos. "A ordem reina em Varsóvia!" "A ordem reina em Berlim! Eis como proclamam as suas vitórias os guardas da "Ordem" através de todos os exércitos que se estendem de um lado para outro da luta histórica mundial. A destituição dos vencedores não indica mais do que o final de uma etapa da "Ordem" que deve ser mantida e proclamada periodicamente, mediante toda a classe de sangrentos assassinos, sem deter-se na sua marcha para o seu destino histórico, quer dizer, para o seu fim.
O quê tem achegado esta Semana às nossas ensinanças? Em primeiro lugar, ainda no meio da luta e dos gritos vitoriosos da contra-revolução, os proletários revolucionários puderam chegar a medir os acontecimentos e os seus resultados com a grande medida da história. E isto aconteceu assim porque resulta que a Revolução não tem tempo a perder e, em conseqüência, persegue a sua vitória por cima das tumbas e por baixo das habituais vitórias e derrotas.
Reconhecer as suas linhas de orientação e seguir os seus caminhos com plena consciência é a tarefa fundamental de todos os que lutam pela vitória do socialismo internacional.
É possível esperar uma vitória definitiva do proletariado revolucionário, na sua luta com os Ebert-Scheidemann, para aceder a uma ditadura socialista? Decerto que não, sobretudo se se considerarem devidamente todos os fatores chamados a decidir sobre a questão. O ponto vulnerável da causa revolucionária neste momento é a não-maduro política da grande massa de soldados que ainda permitem aos seus oficiais que os mandem contra os seus próprios irmãos de classe. De resto, a não madurez do trabalhador-soldado não é mais do que um sintoma da não-maduro geral em que ainda se acha imersa a revolução alemã.
O campo, que é donde procedem a maioria dos soldados, fica tanto depois como antes fora do campo de influência da revolução. Berlim é até o presente, face ao resto do país, algo assim como um ilhéu. Os centros revolucionários da província (os de Renânia, Wasserkant, Brunschwitz, Saxe e Wurtemberg nomeadamente) estão de corpo e alma do lado do proletariado berlinês, mas polo momento falta uma concordância direta na ação, que é a única que pode proporcionar uma incomparável eficácia ao arranque e a combatividade dos operários de Berlim. Além disso, a luta econômica (que é origem de verdadeiras fontes vulcânicas em que se alimenta a revolução) acha-se ainda numa fase claramente inicial.
Disso tudo pode deduzir-se claramente que não é razoável contar polo momento com uma vitória de tipo decisivo. A luta destas últimas semanas teve como desenlace o resultado das citadas insuficiências. Sempre há um disparo inicial, mas qual era na realidade o ponto de partida da última semana de luta? Como já aconteceu em casos precedentes, como já aconteceu no 6 de Dezembro, como já aconteceu no 24 de Dezembro, desta vez também estivo a origem numa provocação brutal pela parte do governo. Como no caso do assassinato dos manifestantes desarmados, como no caso da matança dos marinheiros, desta vez foi o atentado da Prefeitura da polícia a causa originária de todos os acontecimentos. E é que a revolução nem sempre tem hipóteses de agir seguindo as suas livres decisões, em terreno descoberto e depois de um bom plano de manobras ideado por algum bom
estratega. Os seus inimigos tenham também a sua iniciativa, e por vezes inclusive som eles quem a tomam, que por certo é o que se passa geralmente.
Porém, ante o fato da insolente provocação do governo Ebert-Scheidemann, os operários revolucionários estavam forçados a pegarem nas armas. Com efeito, para a revolução, pode dizer-se que era uma questão de honra responder o mais rapidamente possível e com todas as forças ao ataque, porque se assim não fosse teria sido impulsada à contra-revolução, a uma nova etapa repressiva, com o que teriam resultado comovidas as fileiras revolucionárias e diminuído o crédito moral da revolução alemã.
A melhor manobra é uma boa viragem inesperada e audaciosa.
A resistência surgiu tão espontaneamente, com uma energia tão evidente, do mesmo seio das massas berlinesas, que do primeiro momento pode dizer-se que a vitória moral estivo do lado da rua. Uma lei interior da revolução é a da impossibilidade de esperar na inatividade depois de que se deu um passo para a frente. A melhor manobra é uma boa viragem inesperada e audaciosa. Esta regra elementar de toda a luta é que rege com maior razão todos os passos da revolução. Nesta ocasião haveria de demonstrar aliás o são instinto, a força interior sempre fresca do proletariado berlinês e uma combatividade do mesmo que não se limitou a reintegrar Eichorn nas suas funções, mas que impulsionou a massa para ir em pós de outros redutos da contra-revolução, como é a imprensa burguesa, representada de primeira mão polo Vorwaerts. Se todas estas iniciativas surgiram espontaneamente da massa é porque esta sabia que a contra-revolução não se havia de conformar com a derrota e que havia de procurar a provocação como fosse uma batalha onde se mediram todas as forças de ambos os combatentes.
Aqui também depararemos com uma das grande leis históricas da revolução, contra a qual estilhaçam todas as subtilezas próprias dos pequenos maquiavélicos "revolucionários" ao estilo dos do U.S.P.D., que em cada ocasião de lutar não procuram mais do que o seu correspondente pretexto para se bater em retirada. O problema fundamental de toda revolução (neste caso é o da queda do governo Ebert-Scheidemann) surge em cada caso com toda a atualidade, porque cada episódio da luta descarta, com a fatalidade das leis naturais, todo compromisso com a calmaria ou com as gargalhadas da politiquice reformista, exigindo em todo o momento o máximo por pouco maduras que forem as circunstâncias... Abaixo o governo de Ebert-Scheidermann! Esta é a palavra-de-ordem que emerge como inevitável de cada episódio da nossa atual crise, tornando na única fórmula capaz de exprimir o senso e o significado de todos os conflitos parcelares, e de levar a luta até o seu ponto culminante.
O resultado desta contradição entre o agravamento do objetivo e as insuficiências prévias para o seu cumprimento tem como concreção o estabelecimento da fase inicial do desenvolvimento revolucionário, no decurso do qual as lutas parcelares sempre acabam com uma "derrota" formal. Mas a revolução é a única forma de "guerra" em que (por lei de vida que lhe é própria) a vitória final apenas pode ser atingida através de uma série de "derrotas" prévias.
O quê é que nos mostra se não toda a história das revoluções modernas e do socialismo? O primeiro facho que iluminou a luta de classes na Europa foi a insurreição dos sedeiros de Lyon em 1831, que terminou com uma flagrante derrota. O movimento dos Cartistas na Inglaterra concluiu também com uma derrota. O levantamento do proletariado em Paris, durante as jornadas de 1848, desembocou igualmente numa esmagadora derrota. E a Comuna de Paris teve semelhante desenlace..... Todo o caminho do socialismo está efetivamente asfaltado de derrotas, apesar do qual vemos que a história do mesmo avança inexoravelmente, passo a passo, para a vitória que há de ser definitiva. Onde estaríamos hoje sem estas "derrotas" das que tiramos a experiência histórica que nos permite reconhecer a realidade das cousas em toda a sua dimensão? Na atualidade, quando temos conseguido chegar já ao limiar da batalha final, é precisamente quando melhor podemos reconhecer que é sobre todas essas "derrotas" sobre as que nós ficamos em pé. Não podemos prescindir de nenhuma delas, porque cada uma das mesmas faz parte da nossa força atual.
Vitória na derrota e derrota na vitória.
Este é justamente o contraste e a aparente contradição que diferencia as lutas revolucionárias das lutas parlamentares. Na Alemanha contamos com quarenta anos de "vitórias" parlamentares, de forma que pode dizer-se que durante todo este tempo estivemos marchando de vitória em vitória, sendo o resultado a grande prova histórica de 4 de Agosto de 1914: a derrota política e moral mais catastrófica e inesquecível.
As revoluções, polo contrário, não nos tenham achegado mais do que contínuas derrotas, mas inevitáveis estas derrotas som as melhor garantia da nossa vitória final... Claro que isso tudo entranha uma condição! E é a de sabermos em que circunstâncias teve lugar cada derrota, quer dizer, se esta foi o resultado de umas massas imaturas que se lançam à luta, ou de uma ação revolucionária paralisada no seu interior pela indecisão, a fraqueza e a falta de radicalismo.
Dois exemplos típicos de ambos os casos poderiam ser a revolução francesa de Fevereiro e a revolução alemã de Março. A ação heróica do proletariado de Paris em 1848 converteu-se na energia mais vivificadora que cabe para o proletariado de todo o mundo, enquanto os lamentáveis desfalecimentos da revolução alemã de Março, do mesmo ano, viram-se metamorfoseados numa espécie de pesada cadeia para todo o desenvolvimento histórico ulterior da Alemanha, cujos efeitos regressivos podem ser rastejados mesmo nos acontecimentos mais recentes da nossa revolução e na crise dramática que acabamos de viver.
Como será vista, em tal caso, a derrota da nossa Semana de Spartakus à luz da mencionada perceptiva histórica? Como o resultado de uma audaz energia revolucionária perante a insuficiente madurez da situação, ou como o desenlace de uma ação empreendida sem a necessária convicção revolucionária?
De ambas as formas! Porque a nossa crise tem com efeito um duplo rosto, o da contradição entre uma enorme decisão ofensiva por parte das massas e a falta de convicção por parte dos chefes berlineses. Falhou a direção. Mas este é o defeito menor, porque a direção pode
e deve ser criada pelas massas. As massas som com efeito o fator decisivo, porque som a rocha sobre a que será edificada a vitória final da revolução. As massas cumpriram com a sua missão, porque fizeram desta nova "derrota" o elo que nos une legitimamente à cadeia histórica de "derrotas" que constituem o orgulho e a força do socialismo internacional. Podemos ter a certeza de que desta "derrota" também há de florescer a vitória definitiva.
A ordem reina em Berlim!... Ah! Estúpidos e insensatos carrascos! Não reparastes em que a vossa "ordem" está a alçar-se sobre a areia. A revolução alçará-se amanhã com a sua vitória e o terror pintará-se nos vossos rostos ao ouvir-lhe anunciar com todas as suas trombetas: ERA, SOU E SEREI!